TUDO É URGENTE — MENOS VOCÊ
Há um tempo atrás li em algum lugar que a ruína da democracia jornalística não é a deturpação dos fatos, mas a escolha da pauta: o que deve ser dito ou não-dito, o que deve ser dito parcialmente? Desde que me propus a usar esse espaço para escrever pequenas crônicas e observações, sabia que não queria cair nessa cilada de observar o mundo à procura de pautas, isso é muito perigoso — além de nos deixar ansiosos. Primeiro porque creio, sinceramente, que as questões que nos atravessam também atravessam muitas pautas, de modo que é um trabalho hercúleo selecionar apenas uma; me interesso por leituras que, ainda que meio trôpegas, procuram falar de diversos assuntos, ora encadeando-os em um círculo lógico ou mantendo o círculo lógico em aberto para que o leitor tire suas conclusões. É aquele velho ditado, que acho muito acertado, só erra quem faz — só é que nossos pais estavam certos? Se vocês não concordam com isso, se apressem para sair o mais rápido possível da fase heroica e entrem na fase realista.
O mundo está cada dia mas acelerado e, comprovadamente, nosso cérebro, plástico, não se adapta rapidamente às exigências cada dia mais ferozes — é aquele velho ditado: ele faz o tempo dele. Uma das coisas mais difíceis de um ser humano perceber é que o que chamamos de “eu” vive em três tempos diferentes, que nunca coincidem: o tempo do cérebro, o tempo do corpo e o tempo do espírito. Não vou dar exemplos sobre isso, pois é muito simples: basta lembrarem de alguma decisão que tomaram recentemente, o prazo era curto, e algo dentro de você grita esse descompasso: algum desses três tempos falhou, mas também a tentativa de sincronizá-los é a tarefa de uma vida. Bom, só erra quem faz. Tudo é urgente, menos você, foi a frase que algo dentro de mim sussurrou nessas últimas semanas. Semanas em que as demandas externas silenciaram as internas, o que me trouxe até um sádico prazer de realização ao resolvê-las, mas não me trouxe a satisfação esperada ao me recordar do que abri mão para que resolvê-las fosse possível. Até que outra semana veio e novas urgências apareceram, os finais de semana de descanso deram lugar a tentativas trôpegas de presença na vida familiar e/ou com amigos e eu queria ficar em casa, o corpo gritando: pare! pare! pare! Era falta de B12 no sangue, mas também era outra coisa. Não me espantaria se o resultado daquele exame fosse: falta de sangue, a pós-modernidade é um vampirão gótico que se recusa a morrer e bebe todo o nosso sangue.
Tenho um amigo que diz que o Rio de Janeiro aposta nas belezas naturais do dia, nesse tipo de turismo, para esconder as grandes tragédias que acontecem nessa Gotham City à noite, ao passo que São Paulo investe no turismo da vida noturna de forma a compensar o absoluto cinza-pressa das manhãs de trabalho e poluição, voilá, acho que essa visão é muito irônica e, de certa forma, correta. “Só vejo gente feia dizer que é demissexual e você é bonito!”, essa foi a frase que escutei um amigo dizer ao outro, num ônibus rumo à Ipanema, e é uma típica frase do Rio. A mesma cidade em que, se qualquer um for visto chorando, um completo estranho vai chegar e dizer: “fica assim não, nem”. Curioso demais, o Rio. O que quero dizer é que nós estamos sempre demandados por observações externas: exames, avaliações de desempenho, o score do Serasa, bancas de universidade, avaliações de corridas/entregas, que não percebemos que, na verdade, estamos desesperados pelo oposto: observar o lado de fora, das maiores delícias da vida. Admiro muito, e é algo que tento cultivar em mim, a força da presença absoluta. Fácil não é, mas só erra quem faz.
Observo os tipos de homens, tantos, nas andanças.
Há aqueles que se dizem super diferentes, nos visuais e nas ações, mas basta abrirmos a Shein e encontramos setenta iguais e um rápido giro pela metasfera nos resume todas as suas pautas. Também existe aquele tipo de homem vulnerável e você tem a impressão de que qualquer coisa que você disser pode rebentá-los. No entanto, alguns são perigosíssimos, pois só enxergam suas próprias vulnerabilidades (eu também serei impactado com a taxa doida do Trump, mas eles que são grandes que se entendam!) e ali permanecem em seu caldo de cultura, proliferando portas fechadas. Há, contudo, outros tipos de homens, os durões, superprotetores e ciumentos, você é a caça deles e eles deixam isso muito claro e, de certa forma, você acha até interessante esse joguinho (você me paga, Fábio Jr.!) e entra no ritmo. No entanto, é uma linha tênue entre jogo ficcional e realidade, há quem goste. Por outro há os unalovebombers, ultrarromânticos, bastante fofos e você acha até interessante esse joguinho (você me paga, Roberto Carlos!), é meu amor pra cá, meu bebê pra lá, o que você almoçou e outras trivialidades pseudoprotetoras. No entanto, eles geralmente não suportam muitos danos da realidade e são facilmente erodidos com a primeira conta de luz. E o que dizer dos homens fitness, completos garotos-propaganda da indústria do bem estar? Sempre contam as calorias, antenadíssimos nas tendências esportivas, gostam de trilha e, não raro, opinam sobre tudo sem se aprofundar em nada? Até te oferecem um suco, mas você diz que prefere o de maracujá — a alta da SELIC está de deixando com os nervos à flor da pele — como resistir a esses seres apaixonados e que acham, sempre, que estão mudando a sua vida ao te levar para uma vida mais saudável? De certa forma, você acha até interessante esse joguinho (você me paga, blogueira do meu algoritmo antes de eu sair do Instagram), mas sempre há uma chance de você não dar conta dessa pressão externa e esses seres de luz comentarem, em qualquer turma de amigos: nós éramos ótimos juntos, mas de universos muito diferentes!
E como pude me esquecer dos homens intelectuais? Sempre com alguma tese na mão, palavras e oratória brilhantes, olhos e mãos um pouco nervosos, é verdade, mas com um charme absolutamente encantador por causa de suas certezas e dúvidas (artigo de luxo). Eles sempre querem mostrar a você algum aspecto de tua vida a qual você não compreende totalmente, um lado oculto da lua, até algumas coisas que você já sabia, mas se faz de burrinho só pra ouvi-los falar, alguns tem bocas lindas. Eles sempre falam por citações, um texto escrito sem citação, para eles, é um texto perdido, até você começar a achar que eles próprios são citações deles mesmos. Você pode até achar interessante esse joguinho (você me paga, UFRJ!), mas para a maioria deles o amor é um objeto e não uma experiência tátil. Qual é a dificuldade de aceitar o fato de que o amor, às vezes, é semelhante a uma epifania religiosa? Há, também, os viajantes. Seres maravilhosos, esses. Se orgulham de não ter qualquer território, verdadeiros cidadãos do mundo. Esses costumam sentir falta de um colo, quando retornam, mas logo partem outra vez para explorar algum canto desconhecido. Às vezes trazem uma lembrancinha das viagens e dizem, nostálgicos: “lembra daquele ano, quando voltei de X e fomos a Y”? E, então, você percebe que não é uma pessoa para ele, mas um lugar. Como é bom ser um lugar quando enjoamos de ser, não acham? Acho que os pais e mamães de pet vão me entender.
Mas existe um tipo de homem, este sim, perigosíssimo, que é o que circula dentre todos esses, entende seus assuntos e transita com fluidez impressionante. Não sei em que arquétipo defini-lo, mas esse trânsito é, quase sempre, silencioso, contemplativo, raramente intervencionista, ele permite que eles sejam, desde que também permitam serem observados sem qualquer análise ou julgamento. Esse tipo de homem é capaz de olhar dentro do olho de cada um deles, sem sequer piscar, de compreender suas forças e limitações. É o tipo de homem que, não importa qual deles esteja a seu lado, vai tocar-lhes a coxa, por baixo da mesa de plástico de um bar, de um jeito que, sem palavras, diz: este é o meu homem. E, então, vai sorrir, como se tivesse acabado de dizer que dois e dois são quatro. Esse tipo de homem entende o poder da observação, do espaço para o não-ser e, disso, consegue criar um jogo sensual inteligente. Esse homem compreende ironias como ninguém, portanto não declara guerra a coisas irrelevantes e as mantém em seu devido lugar. Esse tipo de homem não costuma se casar, pois é o que desperta paixões rápidas, intensas e muito, muito breves, que ninguém é capaz de esquecer, mas não conseguem sustentá-lo em uma categoria pré-estabelecida. Tenho certeza que você está imaginando algum desses agora, esse que você ainda lembra, esse mesmo. Um perigo que você gostou de correr e não soube o que fazer, como se estivesse desesperado para entrar no mar e há um alerta de correnteza. O segredo para se relacionar com esse homem? Entre sem pedir qualquer licença, olhe-o nos olhos e diga: então vamos criar as regras desse jogo. E não as quebre.